segunda-feira, 29 de dezembro de 2008


A QUEIMA DO CÃO DE PALHA

por Alfredo de Sousa in O Progresso de Paredes


Desde os primeiros instantes em que pude desfrutar o novo e mais recente romance de Pedro Baptista, e somente depois de deixar fluir os sentidos, me debrucei no seu título, “A Queima do Cão de Palha”. Pouco ortodoxo, pensei. Mas logo me ocorreu que Pedro Baptista é um dos autores que dão os seus livros títulos precisamente pouco ortodoxos e que, além disso, este vem na sequência dos seus anteriores títulos romanescos, pelo que o deste mais recente livro, se mantém fiel à sua, chamemos-lhe, firma literária, um tanto de acordo, de resto, com a sua heterodoxia de cidadão sócio-político-intelectual.
Com efeito, das quatro obras ficcionadas e até agora publicadas por este romancista do Porto, somente uma tem um título que poderá ser considerado de ortodoxo. Mas, mesmo esse... O título desse romance é “O Cavaleiro Azul”, de 2001, porém, poder-se-á perguntar que tipo de azul é o deste cavaleiro, se não é, também, um azul metafórico, ou se é o azul da indumentária ou do azebro próprio do material de que é feito. Os outros livros de ficção do autor e que podem não seduzir pelo título que os firmam são, “Sporá”, de 1992, as suas primícias literárias e que logo auguraram a sua capacidade romanesca (foi finalista do Grande Prémio do Romance, da Associação Portuguesa de Escritores) e um conjunto de narrativas publicadas em livro, em 2006, e que levou o título de “Pessoas, Animais e Outros que Tais”.
Por esta, digamos, fidedignidade titular, não estranhei o título deste novo romance de Pedro Baptista, “A Queima do Cão de Palha”. Dado, porém, o seu tecido ficcional, logo pensei que este título não era outra coisa senão uma metáfora, tal como nos seus anteriores títulos ficcionais. De resto, considero que neste autor a metáfora não é somente um recurso estilístico-literário, mas, sobretudo, a intenção de expressar, no título, por palavras incisivas e percucientes, a insinuação que o move e representa. Pode, pois, não ser nem parecer ortodoxo o título “A Queima do Cão de Palha”, mas é, com certeza, uma metáfora que nos coloca em presença de um livro que, entre outros testemunhos (o inimigo colectivo e o “inimigo” de cada um de nós) remete para a purificação pelo fogo, como acontece com uma personagem que se auto-imola numa explosiva acção revolucionária, interrompendo uma vida complicada, repleta de traumas e de visões fantasmáticas, numa obsessiva procura de “libertar-se de si próprio”, enfim, uma personagem que busca, nos seus inexoráveis limites, a sua própria autenticidade.
Não se confina, porém, ao título, à metáfora, portanto, a trama desenvolvida em “A Queima do Cão de Palha”, uma vez que ela se inclui na temática que preside ao livro: a acção político-revolucionária num determinado tempo pré-anunciador de tempos outros de mais conclusivos estertores e que envolverá alguma juventude do tempo, com muito de onírico à mistura, é certo, como é próprio dessas idades, mas determinantemente empenhada no combate ao regime político-social salazarista/caetanista (“regime fascista”, na terminologia dessa salutar rebeldia juvenil). Estas acções contribuíram, também, para o advento de sinais emergentes na metamorfose das mentalidades, que se foram impregnando e desenvolvendo como consequência de múltiplos e voluntários exílios e novas vivências, que no tempo do romance (década de sessenta, inícios da de setenta do século passado) tinham como destino privilegiado a mirífica França, designadamente Paris, que o recurso à reencetação ou prosseguimento de estudos universitários justificava, a par com a neófita fruição de uma liberdade consolidada, até aí desconhecida, e não somente, nesses tempos, a fuga ao cárcere ou à guerra colonial.
É neste ambiente de auto-exilados que os jovens protagonistas desta revolucionária história, “antifascista”, para nos colocarmos em comunhão com o seu narrador, e na esteira, de “Sporá” que, se não a paternaliza, certamente a paraninfa (mas, também, em “O Cavaleiro Azul”, romance onde se recorre à privilegiada temática revolucionária de jovens ardorosamentecombativos) é, pois, neste ambiente de auto-exilados que os jovens encontram um “velho” revolucionário, que se lhes torna compagnon de route, e a quem desde a juventude o salazarismo visceralmente repugnara, como o leitor fica a saber quando o narrador o informa que a sua clandestinidade e exílio remonta à revolução de 3 de Fevereiro de 1927. Juntos, o “velho” e os jovens revolucionários, irão ser os protagonistas destas histórias (destas memórias?) ficando o leitor a compreender (melhor que nas ficções anteriores de igual temática) uma espécie de paradigma da aventura revolucionária pré-abrilana, que envolvia uma chusma de jovens idealistas, úberes de tanta paixão e sedução quanto de aventureirismo e irreflexão, próprios, de resto, de todos os entusiasmos e generosidades juvenis, num tempo propício a todas elas e, também, a todas as irreverências que as animam, para mais alvoroçadas e espicaçadas com os ideais desse, ao tempo, marco da rebeldia juvenil, o recente Maio/68, de que este ano se comemorou o 40.º aniversário.
Incluindo o “velho” revolucionário, o “Filósofo da Póvoa”, a quem, no entanto, o ocaso definitivo chegara na sua forma patológica aquando da última acção revolucionária conjunta (1971) a última “acha” para “a queima do cão de palha” antes desse “dia inicial inteiro e limpo”, como nos lembrou Sophia, nunca, porém, como nesses cruciais momentos, os jovens revolucionários e o menos jovem entrecruzaram as suas vidas na privilegiada temática que preside a todo o livro: o revolucionarismo antifascista, traduzido na pragmatização da acção armada política, tendo como objectivo o derrube (ou a contribuição para) do regime salazarista/caetanista. A sociedade portuguesa de pós-25 de Abril é, pois, credora dessa juventude generosa e altruísta, avocadora de voluntariosas sujeições a exílios e outras deserções e punições.
É pois, um fragmento desta trama geracional (chamo-lhe “fragmento” porque Pedro Baptista continua a escrever o mesmo livro, “sempre já passado, sempre presente”, na esteira de Maurice Blanchot, perseguindo, portanto, “o livro por vir”) que se lê neste canónico romance, condensado no heterodoxo título “A Queima do Cão de Palha”, dado à estampa, significativamente, em Abril passado e que, para mais, assenta numa fabulosa explanação lexical, recuperadora de uma excepcional riqueza vocabular, realçada por arcaísmos, neologismos, trocadilhos e populares expressões idiomáticas, mais olvidadas do que obsoletas.
Trata-se, em suma, de um notável livro/testemunho de Pedro Baptista, que, deste modo, faz jus à sua predilecção de escritor, cívica, política e extremamente empenhado nas metamorfoses da sociedade em que vive (designadamente, apelando à autenticidade de cada um de nós, “recado” privilegiado deste magnífico livro). Escritor e cidadão, de resto, que continuam a ser apaixonados intervenientes, cultural, política e socialmente, no Portugal de hoje. Tal como o foram no Portugal de ontem!...

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