sábado, 6 de setembro de 2008

Altos quadros da Estradas de Portugal sob suspeita

Cravinho sabe ou não sabe o que diz? Sabe como parece que sabe, ou não sabe como dizem que não sabe? E se não sabe, como foi o que foi e é o que é? E se sabe, que vai acontecer?
(Público) 06.09.2008, José António Cerejo

A Geoarque, uma firma que faz estudos de arqueologia para a EP, é controlada por altos funcionários desta empresa de capitais públicos

João Cravinho extinguiu a JAE em 2000 por causa de suspeitas de corrupção, mas os problemas mantêm-se. Uma grande parte dos negócios da área do Ambiente relacionados com a construção de estradas está nas mãos de empresas controladas por altos quadros da Estradas de Portugal (EP), que actuam em violação da lei e das suas obrigações de funcionários públicos. Embora haja indícios de situações mais graves na EP, algumas das quais estão a ser investigadas internamente, este caso ocorre nos seus serviços de Ambiente, onde pelo menos quatro quadros superiores estão, ou estiveram, envolvidos em empresas cuja actividade se centra na produção de estudos ambientais e arqueológicos encomendados por aqueles serviços. A situação é parcialmente conhecida e comentada nos meios arqueológicos há muitos anos, mas nunca deu origem a nenhuma queixa das empresas concorrentes por receio de represálias.

A administração da EP, empresa de capitais públicos que herdou as competências da antiga Junta Autónoma de Estradas (JAE), diz que desconhecia estes factos e abriu esta semana um "inquérito completo e detalhado" depois de ter sido questionada pelo PÚBLICO.


No início da história está a constituição, em 1992, de uma firma de estudos e projectos ambientais (Trifólio), na qual prestaram serviços dois técnicos da JAE, Ana Cristina Martins, actual directora do Gabinete de Ambiente da EP, e Joaquim da Silva Thó, um engenheiro agrário que também exerceu funções de chefia na EP e estava colocado no seu Gabinete de Ambiente quando deixou a empresa em Abril deste ano. Já em 1996, dois dos sócios-fundadores da Trifólio, que não tinham qualquer ligação directa à JAE, participaram na constituição da Geoar-que, uma empresa que se tornará rapidamente a principal fornecedora de serviços de arqueologia à JAE e de-pois à EP - da mesma forma que a Trifólio assumirá a liderança dos estudos ambientais encomendados por estas entidades. Na Geoarque, os dois fundadores da Trifólio repartem o capital com Ivone Tavares - secretária do director dos serviços do IPPC (actual Igespar) que tutelavam toda a actividade arqueológica no país e então mulher de Carlos Ramos, o único arqueólogo que trabalhava na JAE e hoje é o coordenador do Património Cultural do Gabinete de Ambiente da EP - e com Nuno Rodrigues, filho de Arlete Castanheira, técnica superior da JAE e ainda colega de Carlos Ramos no seu Gabinete de Ambiente. Estes dois quadros da JAE são, desde sempre, quem controla todos os negócios da Geoarque, embora o capital da sociedade seja formalmente detido por um técnico de seguros e por uma mulher sem qualquer ligação à arqueologia, desde que os familiares de Arlete Castanheira e Carlos Ramos, bem como os fundadores da Trifólio (que também abandonaram esta empresa já nesta década), saíram em 2000.Arlete Castanheira e Carlos Ramos - um chefe de divisão que tem na EP um papel-chave na contratação de todos os trabalhos de arqueologia da empresa e dos empreiteiros que ela contrata - são co-proprietários da sede da Geoarque, em Linda-a-Velha, e ambos intervêm directa e quotidianamente na sua gestão. Arlete Castanheira tem procuração para tratar dos seus assuntos, é co-titular das suas contas bancárias e dirige actualmente o processo de integração da Geoarque no grupo Amb e Veritas, que tem entre os seus sócios um antigo presidente da associação ambientalista Quercus, José Manuel Marques, e que controla igualmente uma parte considerável das encomendas de estudos ambientais da EP. Neste contexto, Arlete Castanheira criou já este ano uma nova empresa de arqueologia em que possui a maioria do capital e onde tem como sócia a Amb e Veritas. A sociedade, que adoptou a denominação Geoarque II, partilha a sede com a Geoarque e prossegue o mesmo objecto social. Confrontada com estes factos, a gerência da Amb e Veritas respondeu que foi informada por Arlete Castanheira de que ela se encontrava "em fase terminal de desvinculação" da EP, informação que constituiu um "argumento necessário e fundamental à constituição" da Geoarque II.

A empresa alega desconhecer as relações de Carlos Ramos e de Arlete Castanheira com a Geoarque e diz que a ligação de Arlete Castanheira à EP "em nada contribuiu" para a decisão de se associar a ela. "O processo de constituição da Geoarque II visa aproveitar o nome Geoarque no mercado, tendo nós sido informados pela dr.ª Arlete Castanheira que tal sociedade iria cessar a sua actividade", acrescentou a Amb e Veritas, assegurando que "jamais foi favorecida em qualquer tipo de situação".

A administração da EP adiantou que Arlete Castanheira se encontra com baixa médica quase ininterrupta desde Setembro de 2006 e que começou a negociar a sua saída da empresa em Fevereiro deste ano, saída que ainda não se concretizou.

As suspeitas de promiscuidade entre altos quadros da entidade que tutela a construção de estradas e as empresas a quem adjudica contratos vêm de longe e encheram muitas páginas de jornais há uma década. O problema, no entanto, está longe de ter desaparecido e alguns dos seus afloramentos actuais têm origem em teias de relações criadas no início dos anos 90, antes, portanto, das investigações judiciais, da sindicância e do inquérito parlamentar que abalaram a antiga JAE e conduziram à sua extinção, em 2000, por iniciativa do ex-ministro João Cravinho.

O PÚBLICO tentou contactar todas as pessoas e empresas nomeadas, mas, à excepção da gerência da Amb e Veritas e da administração da EP, nenhuma delas se mostrou disponível para falar.

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