segunda-feira, 31 de março de 2008

"Na Universidade do Porto está tudo a cair de podre"

Uma entrevista inquietante do Camarada Mário Sousa, com revelações gravíssimas, tanto mais sendo feita a um homem que sabemos que fala a verdade. Não resistimos a um comentário fora de contexto: também as coisas vão mal no "secundário" porque transformaram os professores de liceu em "professores de liceu".

"Público" 31.03.2008, Alexandra Campos e Carla Marques (Rádio Nova)
Se o dinheiro for só para os laboratórios e transformarem os professores universitários em "professores de liceu", mata-se a Ciência", defende.
O cientista Mário Sousa, que se especializou em Medicina da Reprodução em França, quis lançar os primeiros bancos públicos de espermatozóides e de sangue de cordão umbilical do país, mas os projectos ficaram pelo caminho. Professor no Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar (ICBAS) e investigador na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, confessa-se hoje "francamente desiludido" com a actual política para o sector e defende que se deveria investir em infra-estruturas no país, em vez de se gastar milhões de euros "em institutos magníficos como o MIT ou Harvard". Na Universidade do Porto, lamenta, "está tudo a cair de podre".


PÚBLICO/RÁDIO NOVA - Fala-se muito da fuga de cérebros para o estrangeiro, mas consigo aconteceu o inverso. Acha que hoje é fácil para um jovem manter-se em Portugal?

MÁRIO SOUSA - Não. Vim porque tive um desafio enorme, o de dirigir um serviço de Genética (da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto) e montá-lo de novo. Deram-me o prazo de 20 anos para o pôr no topo europeu e eu consegui-o em dez. É um serviço que neste momento é financeiramente autónomo, paga os seus salários com aquilo que gera de serviços ao exterior. Agora, para os jovens está uma calamidade. Consegue mantê-los cá? Não tenho salários ou, se às vezes conseguirmos uma contratação, é uma contratação contra um excesso de aulas ou um excesso de horas de diagnóstico, o que torna inviável qualquer investigação de fundo. Portanto, estou a perdê-los para o estrangeiro. Estou francamente desiludido com a política actual. Não concebo que se pegue em 20 milhões de contos (portanto, muitos mais milhões de euros) e se pense que, colocando essa fatia financeira em institutos magníficos como o MIT ou Harvard, se consegue desenvolver o país. Os nossos investigadores vão lá para fora fazer bons doutoramentos, excelentes descobertas, as suas patentes, e depois, quando chegam cá, para ter um salário médio, vão ter que dar imensas aulas, o que rouba um tempo excessivo. Depois, vão ter que mostrar serviço - de investigação e de patentes e de produtos e de spin offs -, uma pressão constante como se o tempo fosse elástico. E sem meios, porque vamos às faculdades e as infra-estruturas não são decentes, os equipamentos não são minimamente aceitáveis. Eu preferia pegar nesse dinheiro e apostar em boas infra-estruturas. O que é que acha do I3S (o Instituto de Investigação e Inovação em Saúde)?É uma fusão orgânica entre o Ipatimup (Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto) do IBMC (o Instituto de Biologia Molecular e Celular) e o Instituto de Engenharia Biomédica (INEB). Eles querem agregar-se, porque não têm alternativa em termos de concursos europeus. Para serem líderes, têm que ter uma massa crítica de centenas de doutorados. Mas, se a política do ministro Mariano Gago for a que se ouve nos corredores - a de que quem estiver nas faculdades vai ser transformado em professor de liceu e só dá aulas, de manhã a noite, e o dinheiro passa a ir para os laboratórios associados -, isso será matar a Ciência. O sistema americano de que ele gosta muito é exactamente o oposto. Nos EUA ou em França não damos aulas, damos palestras de longe a longe e depois são as publicações que servem para renovar contratos, que são avaliados de cinco em cinco anos. Acho que estamos a ir por um caminho péssimo. A Universidade do Porto não tem as infra-estruturas necessárias?Não, está tudo a cair de podre. De acordo com um estudo do Institute for Scientific Information, porém, quase um quarto da produção científica tem origem na Universidade do Porto...Eu estou à vontade, porque, felizmente tive a sorte de tropeçar em boas descobertas. De todos os professores universitários do Porto e investigadores devo estar no top ten em número de publicações internacionais. Só que estas publicações não resultam da produção nas Biomédicas, mas sim da produção nocturna e de fim-de-semana. E reparto-me por "n" institutos, clínicas, hospitais para conseguir aquilo que em França estava habituado a fazer em apenas um sítio.

PÚBLICO/RÁDIO NOVA - É possível prevenir a infertilidade?

MÁRIO SOUSA - Sim, 50 por cento das causas podem ser prevenidas. A primeira causa é a vida que somos forçados a levar. Ao contrário do que muitas vezes se diz, a maior parte das mulheres adia a maternidade por questões de sobrevivência, não por causa da carreira. E a primeira causa de infertilidade é o ovário depois dos 30 anos. Outra causa tem a ver com o início da vida sexual muito cedo. Não é que faça mal, mas é um facto da vida: se se começa muito cedo, a probabilidade de uma pessoa se manter com esse parceiro é só de cinco por cento. A terceira grande causa são as lesões. Quando tirei o curso, pensava-se que só o alcoolismo crónico, o tabagismo crónico é que davam lesões. Estudos nos animais e agora nos humanos mostram que basta o consumo dos picos de fins-de-semana ao longo dos anos para a quebra da qualidade do sémen e dos ovócitos. Em último lugar, há múltiplas causas que têm a ver com a forma como muitas vezes descuidadamente fazemos a alimentação e a vigilância das crianças até à puberdade. Actualmente há tratamentos para todo o tipo de problemas de fertilidade?Temos tratamento para todas as situações. O que é preciso é que os casais vão à Internet, procurem a Associação Portuguesa para a Infertilidade. Lá estão os textos que explicam os exames que devem fazer. Assim podem defender-se para não andarem a fazer tratamentos antes de terem diagnósticos. E podem muito facilmente discernir entre um bom e um mau médico. Os meus colegas não estão habituados a explicar as coisas, a negociar os tipos de tratamento. Os doentes são manipulados segundo os interesses dos profissionais. Foi pai tardio, aos 45 anos...Foi por opção, não tinha maturidade, fiquei para tarde. E depois também não conseguia.
PÚBLICO/RÁDIO NOVA - Alguns dos seus projectos, como o do banco público de esperma e o de sangue do cordão umbilical, parecem ter ficado em banho-maria.

MÁRIO SOUSA - Foi nas Novas Fronteiras que mos pediram. Estavam lá os actuais ministros e pessoas importantes da Assembleia da República. Pediram-me quatro projectos. A lei sobre Reprodução Medicamente Assistida - que foi aprovada quase na totalidade. Depois pediram-me o banco de sangue de cordão umbilical: oferecemos um projecto semigratuito que utilizava a estrutura do Instituto Português do Sangue, que foi recusado, e oferecemos um totalmente gratuito (era pago pelo engenheiro Belmiro de Azevedo através de uma fundação) e também foi recusado. Fiquei muito incomodado. Disseram que duvidavam da minha benevolência... E a Reitoria da Universidade do Porto desistiu, entretanto, de apresentar um novo pedido de instalação do primeiro banco público de espermatozóides e base de dados de ovócitos, depois de o Ministério da Saúde ter proibido que avançasse. Os cargos públicos assustaram-se tanto com o puxão de orelhas, que vieram negar qualquer envolvimento. E isso é grave. Por respeito a essas pessoas, disse que não vinha a público lavar roupa suja, mas tenho documentos assinados por todos. O Ministério da Saúde afirmou que o banco teria que esperar pela regulamentação da lei. Ora, isto é um absurdo. Porque os bancos não fazem tratamento. Fazemos recrutamento de pessoas, depois temos que seleccionar, congelamos as células, cedemos aos hospitais e controlamos o destino da doação. Os casais que necessitam de doação de espermatozóides ou de ovócitos continuam, assim, a ter que ir a Espanha? Claro, e isso custa (no caso dos ovócitos) 10 mil euros. Como sabia que o Governo nunca daria dinheiro, previa no projecto do banco público que os casais pagariam mil euros, na doação de ovócitos, e 250, na de espermatozóides. Mas é preferível pagar mil do que gastar 10 mil. E, só do Norte, vão a Espanha todos os anos cerca de 300 casais.Mas pelo menos ficou satisfeito com o anúncio da comparticipação de alguns tratamentos de infertilidade no sector privado? Sim, mas estamos no final de Março e estou a ver isto muito malparado. O que foi prometido foi que a comparticipação avançaria em 2008. Portanto, deviam ter os pedidos em Janeiro e em Fevereiro deviam estar cá fora os resultados para as pessoas começarem os tratamentos. Há pessoas a adiar os tratamentos por este motivo?Sim, tenho muitos casais a telefonar-me a perguntar se já se sabe alguma coisa.

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